1 de Janeiro de 1970 Fundação Mário Botas

Consideras-te mais desenhador do que pintor?
Para te responder é preciso entendermo-nos sobre o conceito de desenhar. Desenhar, designar, tem para mim um sentido bastante lato, que se aproxima do da Criação possível. Inclui não apenas formas a duas ou três dimensões, mas também, de uma maneira mais geral, todas as restantes faces daquilo a que se costuma chamar Arte. Desta maneira pretendo ser desenhador inventor, ou mais simplesmente construtor de formas. Construtor enquanto os elementos que utilizo são produto da memória inconsciente da mão ou do olhar, de uma Memória que gerou Musas. Se também sou pintor, isso vem dos materiais que utilizo: pincéis, tintas e papel não fazem decerto o pintor, mas dão-lhe suporte concreto. Se eu fosse arquitecto, ou escritor, actor ou músico, continuaria a ser sempre e em primeiro lugar desenhador naquilo que a minha mão ou o meu corpo teria no imediato potencialmente criador diante da brancura do papel ou do tempo.

Quando começaste a desenhar, além dos desenhos de escola?
Os desenhos de infância, quando não seguem exageradamente um desenho imposto, são para a maioria das pessoas, o momento único em que estas exercem esse poder de designar de que falei antes. É um tipo de desenho que muitíssimo me toca desde que colocado numa perspectiva individual e não competitiva, o que nem sempre se passa na perspectiva de quem deles tem por hábito ocupar-se. A bem dizer, os meus desenhos de infância prolongam-se até hoje numa relativa continuidade que terá sofrido uma certa inflexão por volta dos dezoito anos, altura em que fiz a minha primeira exposição individual.

Sempre te sentiste atraído pela imagética fantástica?
Quando criança e adolescente, os meus desenhos estavam bastante ligados a uma realidade próxima. Vivia então na nazaré, local que tem uma tradição nacional e sobretudo internacional a nível dos chamados “pintores de ar livre”. Era essa a pintura que eu via em menino: barcos, pescadores, o promontório do sítio a entrar pelo mar dentro com o farol na ponta guardado pela pedra do Guilhim. Estes elementos estão presentes em quase tudo o que fiz até aos dezasseis anos, data em que vim para Lisboa e em que comecei a perceber que a pintura seria para mim mais o prazer da descoberta do que a do encontro ou o da recordação. Costumo trazer comigo todo o meu encontro e toda a minha recordação, a minha pintura foi, a partir do início da idade adulta, uma pintura de “descoberta”. A primeira grande descoberta que fiz, aos dezoito anos, foi o surrealismo como forma de estar na vida. É natural que nesses primeiros anos, e à semelhança do que antes sucedera com a “pintura de ar livre”, fosse influenciado pela pintura dos surrealistas. Nesse período foi muito importante para mim o convívio com o pintor Cruzeiro Seixas, convívio bruscamente interrompido pela força do Destino na altura exata para me permitir inventar sozinho novas “descobertas”. Ora descobertas significa revelação e esta quase sempre se confunde com o chamado “fantástico”. Todos os que considero grandes pintores foram pintores “fantásticos”. O próprio construtivismo e uma arte “fantástica”, jogando com noções não só de representação, mas de sagrado e de profano, de realidade e de irrealidade, de presença e de ausência. Tudo isto está no quadrado branco em fundo branco de Kasimir Malevitch.

Costumas reproduzir imagens de sonhos? Lembras-te de muitos sonhos?
Os meus desenhos são de “sonhador acordado” e pouco ou nada têm a ver com memórias dos meus sonhos de “sonhador adormecido”. Embora muitas vezes sonhe, e os temas esses sonhos sejam fundamentalmente temas de amor e de morte, os mesmos temas que se refletem em muitos dos meus desenhos, o acordar dissipa rapidamente a memória distinta do que sonhei, e, com mais frequência, mas que nunca tentei reproduzir ou evocar, nem elas se vieram de forma objetiva imiscuir no meu desenhar.

Costumas ler ficções fantásticas? quais?
Leio pouco aquilo que a que se convencionou chamar “ficção fantástica”, sobretudo a de autores contemporâneos. o essencial da minha leitura é a leitura de mitos. Escrita, a mitologia, antes um texto oral em permanente mutação, fixa-se e aproxima-se do texto sagrado ortodoxo. É um cadáver embalsamado, aqui e além com a sua escoriação, mas com a disforme beleza do que não tem tempo. Gente houve e há, que ao longo da história, tem conversado com os mitos, encenando-os em literaturas, designando-is noutras formas de arte. Entre os meus autores “fantásticos” preferidos estão cervantes, swift, Dante, Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges, mas também Bosch, Brueghel, Blake e Paul Klee, por exemplo.

A tua paixão por Baudelaire e Wagner vem de quando?
Também aqui me é difícil precisar datas: desde a adolescência leitor de poesia escrita ou traduzida em português e francês (só mais tarde me habituei a ler com regularidade o inglês) tive inevitavelmente as minhas preferências: Baudelaire, Rimbaud, Corbiére, Lautreamont… a ideia de fazer um estudo mais profundo sobre Baudelaire partiu de uma série de desenhos que havia feito no verão de 1978, para a exposição que realizei no inverno seguinte em nova iorque e que se ligava com a prosa de Edgar allan poe. o primeiro desenho que fiz, da série de cinquenta desenhos baseados no “spleen de paris” foi “Les Foules”, texto que muito tem que ver com um outro de poe que Baudelaire traduziu com o título de “l’homme des foules”. Mas além de tudo isto Baudelaire atrai-me pela novidade constante da sua poesia e por toda uma série de preferências estéticas e humanas que soube defender na sombra ofuscante da sua obra. O meu conhecimento de Wagner vem de mais tarde, por altura de 1975 quando em Lisboa foi feita, numa temporada do Teatro nacional de s. carlos, a representação da Tetralogia. a chamada “Ópera italiana” desagradava-me por parecer uma estrutura mais ou menos inventiva que servisse de suporte a umas tantas árias às vezes sem muito que ver com a pretendida “acção”. Com Wagner e depois Alban Berg música e teatro fundem-se num só espectáculo. Esses compositores ensinaram-me a amar outros, como Mozart, Weber e Richard Strauss. os meus desenhos sobre ópera são em parte consequência de má opera que se realiza em portugal. Desta forma visualizo a minha própria ópera onde a acção se desenrola debaixo dos meus olhos. o mesmo tem aliás passado comigo noutros campos: vivi durante algum tempo em Londres onde ia frequentes vezes ao teatro. Dos desenhos que fiz nessa época creio que nenhum tem directamente que ver com teatro, na medida em que os espectáculos a que ia assistindo se bastavam, aos meus olhos, a si próprios.

Tens ilustrado muita poesia. Ela dá-te maior estímulo que a prosa? Como se processa esse estímulo?
Para mim, prosa e poesia confundem-se numa mesa linguagem universal e humana. Há sempre nelas alguém que tenta falar consigo, com Deus ou com os seus semelhantes. a poesia procede em geral de um clamar mais directo e ao mesmo tempo contido e menos racional do que a prosa. Mas este tema é extremamente movediço: há mais prosa num soneto de Antero do que em todo um drama de António Patrício. Quando me proponho interpretar um texto tento lê-lo primeiro, sem qualquer ideia preconcebida quanto à sua possível representação plástica. Esta virá mais tarde e o mais espontaneamente possível. Quando o texto se decompõe em várias unidades, como é o caso no “Spleen de Paris”, projecto que me ocupou quase um ano, parto quase sempre do desnho para o texto e não inversamente. Raramente procuro ilustrar, mas antes realizar uma obra paralela que só se esclarece inteiramente pelo relacionamento feito entre ambas.

Houve algum pintor cuja descoberta fosse decisiva na tua vida?
Não um mas dois pintores foram decisivos para a minha forma de encarar a pintura. um, Paul Klee, entrou insidiosamente nela sem que eu me lembre, se é que alguma vez soube, qual foi a sua obra que primeiro vi. Tem sido um companheiro constante que às vezes aparece a dar-me os bons-dias quando desenho. O outro, Egon Schiele, conheci-o em nova iorque, em Julho de 1978 na galeria Serge Sabarsky, Madison Avenue. Se Klee me deu a certeza profunda de uma arte ancorada na vida nascendo dela tal como as flores nascem nas árvores, schiele mostrou-me então, e continua a mostrar-me agora que essa vida não é só a árvore, mas aventura e risco, dos quais somos em geral irresponsáveis, e donde saímos pela porta mais longa da morte ou pela porta mais estreita da loucura. as obras de ambos, durante alguns anos contemporâneos, contém tanta sabedoria como o Tao e os Vedas juntos. Só que pela sua evidência e ocidentalmente podem, felizmente, ser confundidas com adornos inúteis.

As mulheres nos teus quadros têm aparecido sobre imagéticas diversas, por vezes complexas. Que tipo de relação tens com as mulheres?
Creio poder reduzir a dois tipos a imagética feminina da minha pintura. O primeiro tipo é o da Mulher-Outra, daquela que vive em mim, imaginação fundada sobre precários suportes. É uma mulher azul pela distância e rosa pelos delírios que a carne empresta. Mas se essa mulher se torna presença imediata e obsessiva surge o segundo tipo de mulher em Mulher-Lobo, Mulher-Sapo, Mulher-Porco, Mulher-Pantera, enfim, nas várias espécies de ser que devora e suga, hipnóticas serpentes onde a sedução vai a par do esquecimento e da morte.